“Gente, vou mostrar uma música agora. Eles vieram falar comigo: você não tem medo, não? Os banqueiros vão ficar contra você. Eu pensei o seguinte: banqueiros são 10, bancários são mil, quero ficar com os mil. Está aqui o bancário…”. A frase acima é do compositor e radialista Lamartine Babo, no início da década de 1960, apresentando em um programa musical na extinta TV Itacolomi o então jovem bancário Gervásio Horta, autor de uma marcha feita para embalar uma greve nacional da categoria. O jingle político pedia um aumento de 7 mil cruzeiros para os bancários e se transformou no primeiro sucesso do sambista, natural de Teófilo Otoni, no Vale do Mucuri, desde 1954 residindo em Belo Horizonte, cidade que aprendeu a gostar e a cantar em versos e prosas.
Por meio de suas crônicas musicais, o ouvinte pode passear por vários pontos da cidade, acostumada a conviver com as diversas transformações impostas pelo tempo. Se quiser ouvir os “causos” de perto é só chegar no Café Nice, um dos cartões de visita do Centro da cidade, onde o sambista bate o ponto para rever amigos, ouvir e contar histórias e tomar um café coado no pano.
Nesta semana, Gervásio inicia a distribuição do quinto volume da série Amigos e Canções, disco em que o compositor convida vários músicos para interpretar seu repertório, cuja marca são faixas, ou quase hinos, em homenagem à capital mineira. Entre inéditas e releituras, destaque para Praça Sete, na voz de Tadeu Franco, Bela Belô, com Serginho Beagá, Adeus Lagoinha, interpretada por Raimundo do Pandeiro, e Ave Maria da volta, com a participação inusitada do bamba do choro, o cavaquinista Waldir Silva, nos vocais.
“Nós nos encontramos no Mercado Central e ele me convidou. Não canto desde a época em que era integrante do regional da Rádio Inconfidência. Sempre reluto nesse tipo de participação, porque consegui construir um alicerce bom como músico. Não sei se teria o mesmo sucesso como intérprete”, admite Waldir Silva. Ele conta já ter recebido até proposta de patrocínio para lançar um disco como intérprete, mas ainda reluta em encarar a empreitada.
O cavaquinista afirma que participou do projeto coletivo em razão da amizade com o sambista, desde os tempos de rádio. “O Gervásio é um lutador. Uma pessoa que busca sempre valorizar as coisas mineiras”, completa o músico, que se prepara para lançar um disco ao lado do saxofonista José Eymard, com clássicos da música erudita em ritmo de bolero.
Outro participante que também se diz um peixe fora d‘água é o cantor Tadeu Franco. “O samba não é minha praia”, esquiva-se, ao revelar que o convite para participar do disco foi feito por intermédio do produtor cultural Tadeu Martins, amigo de ambos.. Franco, porém, lembra que não foi a primeira vez que cantou uma música em homenagem à capital. No ano do centenário, 1997, sua voz foi escolhida para interpretar o Hino de Belo Horizonte, de Ricardo Faria. “Acho legal essa ideia de cantar a cidade, coisa que muitas pessoas daqui não gostam”, completa.
No disco, ainda participam o Coral da Cemig (Minas Estrada Real), Júnia Vilela (Manhãs de Belo Horizonte), Chiquinho (Lindo Barro Preto), Wilson Dias (Acauã cantou), Marilton Borges (Lá em Sabará), Marcelo Jiran (Deixa estar), Helena Penna (Loucura imensa), Eduardo Costa e Acyr Antão (Cacos de vida), Lucinha Bosco (Festa brasileira) e Luiz Flávio (versão instrumental da Minas Estrada Real).
Rua da Bahia, parceria com Rômulo Paes, foi a primeira música do sambista a abordar aspectos da cultura da ainda cinquentenária capital. O feito chegou a ganhar elogios de Adoniran Barbosa, outro cuja marca também foi divulgar a cultura paulistana por todas as partes. “Em São Paulo, eu e o Rômulo encontramos com ele em um bar, quando ouviu a música, disse: ‘Que coisa boa, vocês cantando a sua cidade. Se nós não fizermos isso, quem vai cantar?’ Fiquei com isso na cabeça”, relembra Horta.
Depois de Rua da Bahia, o sambista fez em seguida Manhãs de Belo Horizonte, a princípio para Agnaldo Timóteo cantar. A música, porém, foi gravada por Ronaldo Adriano, chegando a fazer sucesso na década de 1970. “A partir daí, comecei a fazer música sobre a cidade, até por uma questão de marketing mesmo”, conta Horta, que também é publicitário.
Ele afirma que parte da tiragem de 1 mil cópias do CD Amigos e canções – volume 5 estará disponível no Café Nice, na Praça Sete, e na loja do Juarez, no Mercado Central, a R$ 14,90. O próximo desafio, caso surja, será gravar um disco, como intérprete, só de samba-canção. “Não estou com vontade, mas se fizer vai ser cantando, porque tem público para isso, mas não se grava mais.”
De família tradicional de políticos de Minas e filho de mãe pianista, Horta foi picado pela música desde a infância, por meio do rádio, uma de suas paixões. “São duas coisas que faço todos os dias, a partir dos anos 1950: beber água e ouvir rádio”, brinca.
Nascido em agosto de 1939, veio para a capital mineira com 15 anos, para estudar. “Nessa época, a música era dividida em três: as de carnaval (samba e marcha), as juninas e as natalinas”, emenda. Nos anos de 1950 e 1960, transformou- se em um dos maiores vencedores de concursos de marchinhas de carnaval, algumas em parceria com Rômulo Paes, um dos maiores compositores da cidade. “Hoje, na minha concepção, o carnaval acabou”, sentencia, ao lembrar dos bailes carnavalescos que aconteciam em todos os cantos da região Centro-Sul da cidade.
Ele admite a idéia de que é um saudosista, pelas atuais circunstâncias. “Tenho que ser saudosista pela minha idade. Como dizia o Jackson (do Pandeiro), alegria do vaqueiro é ver o tombo do boi. O prazer de quem é velho e contar o que já foi. Isso é meu patrimônio. Nessa história quem ficou fomos eu e o Jadir (Ambrósio)”, afirma.
O sambista começou a carreira fazendo jingles para diversos políticos. Em razão da publicidade, passou a conhecer os principais artistas da época, como Dalva de Oliveira, Pixinguinha, Herivelto Martins, Jorge Veiga, Jackson do Pandeiro, muitos dos quais chegaram a gravar suas composições, mas de 100 ao longo da carreira, incluindo também boleros, tangos e sertanejos. Na verdade, chegou a se formar em administração de empresas, sonhava em ser aviador, mas acabou se aposentando no serviço público.
Guarda na memória várias histórias de uma Belo Horizonte bem mais provinciana. Tempo em que as profissionais do sexo só saiam do baixo meretrício durante o carnaval; as moças de famílias eram impedidas de entrar nos carros dos rapazes; o serviço de alto-falante Ítalo Andrade ficava responsável pela divulgação das marchas carnavalescas ao longo da Avenida Afonso Pena e as manchetes do Diário da Tarde eram estampadas em um grande painel instalado na Praça Sete.
CINE BRASIL - “A prefeitura fez um concurso de carnaval no Cine Brasil e o Jackson do Pandeiro foi disputar com uma marcha minha, Bloco do pega-pega (“Oi, pega, porque se não escorrega, essa garota não nega, está querendo pular/ Oi, pega, se possível carrega, entra com ela no bloco, não deixa ficar como estar”…).
Ele queria que a gente fizesse uma coisa animada, quando ele entrasse no palco. Compramos umas 20 galinhas brancas e quando ele cantou o trecho “pega o frango no rabo”, soltamos as galinhas dentro do cinema. Achei que fosse ser bom, mas foi uma bagunça. Tiveram que parar, os concorrentes pediram para desclassificar a música”, lembra, aos risos.
Trechos de reportagem do jornalista Zu Moreira para o Diário da Tarde - 16/07/2017
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