Recordações, saudades, alegrias, restos de tristezas – sem mágoas – agarrados no fundo do peito.
Os parentes próximos, mãe, pai e irmãos adormecem nos braços de Deus. Meu filho, meu amigo, é o único fruto que sobrou na árvore da minha família. A solidão às vezes cala no fundo do peito, lágrimas às vezes correm pelo meu rosto, aí surge o mestre. Neste momento o Afonso se esconde, protege-se sob o manto daquele que todos conhecem como mestre, mas que se julga um eterno aprendiz. Destemido por obrigação, exemplo de vida para muitos, sorriso pregado no rosto, nada o aborrece...
Mestre do samba, mestre da vida, mestre que embora tenha errado muito, vai deixar um legado de honestidade para muitos meninos e meninas, para muitos homens e mulheres, que hoje levam para casa o pão através dos seus ensinamentos. Falo isto com orgulho, mas sem vaidades ou sem soberba. Falo isto porque a cada vez que eles – são muitos – tomam-me benção, agradeço ao Criador pela missão que dentro das minhas possibilidades pude cumprir.
60 Anos, cinqüenta deles dedicados ao samba: esse samba que supre quase todas as minhas necessidades, esse samba que me abraça carinhosamente, esse samba que se tornou minha família.
E assim vai-se esgotando meu tempo, vai chegando a hora de rever outros sambistas que também compuseram o mosaico da história da cidade e da minha vida. Não vou citar nomes porque a lista é grande. É claro que pretendo ficar por aqui por mais um tempo, uns 200 anos estaria bom. Mas o que quero mesmo neste momento é agradecer a todos aqueles que fizeram parte da minha caminhada. Agradecer a Adomervil Dias Junior, Chico Salvato, Chico Sadala, Elaine Negão, Danival de Oliveira, Márcio, Rosalvo Braga. A cada um desses citados devo literalmente a vida, foram pessoas que me acolheram nos piores momentos.
Obrigado amigos, obrigado meu samba.
Vamos chegando para este espaço e aqui pretendemos humildemente dar a nossa colaboração na manutenção das raízes às vezes esquecidas. Se nos lembramos de Cartola, Mano Décio da Viola, Clementina de Jesus, e tantos outros baluartes do Rio de Janeiro, também nos lembraremos de Nassib, Javert, Grifo, Irineu, Aníbal, Jairo, Tonico, Enes Marisa, Dona Naná, Baiana Helena, Ana Preta, e tantos outros baluartes que compuseram o mosaico do samba de Minas Gerais.
Obrigado, meu Deus, pela honra e a glória de ter nascido sambista.
*Texto publicado originalmente em 10 de julho de 2009, no blog Sala de Recepção, no portal do jornal O Tempo.
**Afonso Marra Filho, o Mestre Affonso, nasceu em Belo Horizonte. Músico, produtor, radialista, colunista, ficou imerso no mundo do samba por mais de 50 anos. Como diretor de Bateria, foi detentor de dezoito notas dez e vários Tamborins de Ouro, maior premiação individual no Carnaval de Belo Horizonte. Participava do Programa Acir Antão, como repórter do samba, na Rádio Itatiaia, todos os domingos. Faleceu em outubro de 2010.