É impossível contar a história do samba de Belo Horizonte sem associá-la a José Luiz Lourenço, o lendário “Mestre Conga”. Nascido às vésperas do carnaval de 1927, em Ponte Nova, Zona da Mata mineira, carrega na bagagem uma incansável luta pelas tradições afro-brasileiras. Filho do lavrador
e sanfoneiro Luiz Balduíno Gonzaga e de Dona Cacilda Lourenço, Mestre Conga assina vários feitos ao longo de 60 anos dedicados ao mundo da música. Foi um dos fundadores, em 1950, do Grêmio Recreativo Escola de Samba Inconfidência Mineira, a mais antiga agremiação carnavalesca em atividade na capital mineira. Também ajudou a introduzir nos desfiles o samba enredo, em uma época em que as escolas da cidade ainda se utilizavam dos temas de improviso para atravessar a passarela e animar os foliões.
Mesmo com essas facetas, só aos 79 anos conseguiu gravar, ano passado, seu primeiro disco, Decantando em sambas, graças ao patrocínio da Petrobras. Com direção e arranjos de Geraldinho Alvarenga, o CD conta com a participação de um time de músicos do calibre de Celso Moreira (violão), Geraldo Magela (violão de 7 cordas), Hélio Pereira (trombone e bandolim), Dudu Braga (cavaquinho), Rogério Sam (percussão), engrossado ainda pelas “pastoras” Donelisa de Souza, Lúcia Santos e Rita Silva.
Nas 12 faixas, todas assinadas por ele, Conga faz da poesia a ponte para percorrer um caminho sem volta, mas bastante nostálgico. Lembra dos “maiorais” (como eram chamados os líderes do samba) Javert Tomé de Sena, Mestre Dórico e Célio Bangalô, de Dona Lourdes Maria de Souza (Lourdes Bocão), “a dama da escola de samba Monte Castelo”, além dos bairros e pontos de encontro de uma Belo Horizonte ainda em formação. Por fim, homenageia sua escola do coração em “Mais esta saudade”: “a ela faço reverência/querida Inconfidência/é lindo seu vermelho alvianil…” .
APELIDO - A trajetória de Mestre Conga pela cultura popular, porém, remonta à década de 1930, quando passa a beber da fonte de matrizes afro-brasileiras, como o calango, a batucada, o samba rural e a congada, do qual vem o apelido que o marca pelo resto da vida. “Meus colegas zombavam de mim na escola, me apelidaram de Conga. Ficava bravo, mas depois fui acostumando com esse nome”, diz. Na adolescência, ao mesmo tempo em que passa a freqüentar aulas de dança de salão, começa a trabalhar em uma fábrica de sapatos para ajudar no sustento de uma família de 10 filhos. Com a suspensão das festas de rua, no período em que durou a II Guerra Mundial (1939-1945), os bailes de salão tomam conta da cidade e Conga se destaca como passista. “Naquela época, nos chamavam de batuqueiros”, explica.
Passado o período bélico, as escolas e blocos carnavalescos retomam os desfiles na Avenida Afonso Pena e Mestre Conga ingressa em sua primeira escola de samba, a Surpresa, braço da pioneira do gênero, a Pedreira Unida, criada em 1938, na Pedreira Prado Lopes. Aos 19 anos, passa a dirigir a Remodelação da Floresta, uma dissidente da Unidos da Floresta. “Aí que comecei a tomar gosto pelo samba, porque antes era uma coisa despretensiosa”, admite. Em 1948, ganha o título de “Cidadão do Samba”, concurso promovido pelos Diários Associados, que movimentava toda a cidade no período de carnaval.
Mestre recebe título de cidadão do samba
Dois anos depois, Mestre Conga realiza o sonho de fundar sua própria escola, a Inconfidência Mineira, a partir das reuniões na Rua Itapeva, esquina com Rua Urandi, na então Vila Concórdia, com a ajuda do irmão Oscar Balduíno, o Kalu, Alírio de Paula, José Alvino, José Ferreira (Zé Preto), José Felipe dos Reis, Sílvio e Luiz Porciano, Dona Olga, Eunice Felipe, Amintas Natalino, Madalena e Dona Lourdes Maria de Souza. “Infelizmente, a maioria desses meus amigos, o pessoal das escolas, como Unidos da Floresta, Monte Castelo, Nova Esperança, Unidos do Prado, já foram todos embora”, lamenta Conga, que se tornou a memória viva do carnaval de BH. “O comércio colaborava com a gente, porque o dinheiro da prefeitura não era suficiente. Não existia a divisão por alas, alegorias, enredo. O samba era só o primeiro refrão, o resto era no improviso”, lembra.
Ao voltar do Rio de Janeiro, onde morou de 1952 a 1954, Conga passa a introduzir na Inconfidência Mineira elementos inspirados nos desfiles cariocas. “Aqui, o nosso batido era mais seco, lembrava o maracatu, as congadas”, disse. Hoje, o sambista faz um mea-culpa, ao constatar que, ao trazer as influências externas, as escolas ficaram sem uma identidade própria. Para o carnaval de 1955, a agremiação da Vila Concórdia apresentava um enredo sobre Tiradentes, uma inovação para a época. “Para não deixar que saísse sozinho, a Unidas da Brasilina criou um enredo sobre a Princesa Isabel, que acabou vencendo o carnaval daquele ano”, diz. “Pouca gente sabe que, até 1955, não costumava ter desfile de rua no carnaval”, emenda.
Ele conta ainda que o carnaval da cidade encerrava-se na quinta-feira, antes da data oficial, com a Batalha Real, na qual era escolhido o “Cidadão do Samba”. Dois dias antes, acontecia a Batalha do Galo, promovida pela extinta Folha de Minas e a Rádio Inconfidência, quando era eleita a “Rainha do Samba”. “Durante a Batalha Real, da Praça Sete até a Rua Goiás, ficava entupido de gente. As pessoas chegavam a apostar. Nos últimos tempos, a melhor época do carnaval de Belo Horizonte foi na década de 1980, quando éramos a segunda festa de rua do país”, completa. (ZM)
Historiador faz documentário sobre trajetória dos sambistas
Com a ausência das escolas de samba nas ruas de Belo Horizonte, nos anos de 1990, Mestre Conga se reúne com Gilson Melo e Wilson Batata para discutir a criação do projeto Faculdade do Samba, cujo objetivo principal era promover a volta dos desfiles, ao mesmo tempo em que se debatia também a criação de um acervo com a memória do samba na cidade. “Acho que essas duas coisas estão sendo realizadas. Com todos os problemas e limitações, os desfiles foram retomados. Por outro lado, temos dois projetos de documentários, que contam a história da velha guarda e do samba de Belo Horizonte”, afirma o historiador Marcos Valério de Azevedo Maia, que, a partir de 1998, passa a frequentar as reuniões promovidas no Sindicato dos Bancários, no Centro da cidade.
Nascido em Belém (PA), há 44 anos, Marcos Valério mora na capital mineira desde 1985. Há quase 10 anos vem se dedicando ao trabalho de resgate da memória do samba da cidade. Sua monografia na UFMG foi justamente sobre a história de Mestre Conga, a quem considera um griot (espécie de sábio africano que passa por meio da linguagem oral os ensinamentos adquiridos). “Ele é uma pessoa que lembra com detalhes das coisas, um cara muito articulado”, elogia. Agora, prepara uma dissertação de mestrado sobre o samba de improviso, nas décadas de 1940 e 1950, o “repente negro”. Diante do aprendizado com os bambas, Marcos Valério passou a reunir um grupo de sambistas com a proposta de fazer shows, sobre a alcunha de “Velha Guarda do Samba”. Além de Conga, participam do projeto nomes como Lagoinha, Donelisa de Souza, Irmãos Saraiva, Jadir Ambrósio, Rosalvo, Silvio Luciano, Ronaldo Coisa Nossa, Zé do Monte, entre outros.
O historiador conta que já terminou as gravações, em que foram recolhidas 70 horas de filmagens, com a nata do samba da cidade. O documentário sobre a velha guarda, com recursos do Fundo Municipal de Cultura, deve ser lançado no fim deste ano ou início de 2008. Marcos Valério, no entanto, já trabalha para as filmagens do segundo filme, em que o enfoque será a história do samba na cidade. Aprovado pela Lei Estadual de Incentivo à Cultura, e com patrocínio da Net (TV a cabo), o filme abordará o surgimento da considerada primeira escola de samba da cidade, a Pedreira Unida, criada em 1938 por Mário Januário da Silva, o Popó, e José Dionísio de Oliveira, o Xuxu.
A institucionalização do samba na cidade é precedida de dois fatos: primeiro, a vinda de Noel Rosa em 1935 para trabalhar na Rádio Mineira, enquanto se tratava da tuberculose. Um ano depois, foi a vez do compositor Hervé Cordovil, mineiro de Viçosa, mas que residia no Rio, e parceiro de Lamartine Babo e do próprio poeta da Vila, desembarcar em Belo Horizonte para atuar na Rádio Guarani, até 1937. Amigo de Xuxu, Cordovil compôs na época “Pé de manacá”, grande sucesso de Isaura Garcia.
Além da histórica ligação entre os sambistas mineiros com o Rio de Janeiro e o registro dos carnavais e sambas das décadas seguintes (1940 e 1950), o historiador pretende abordar também a importância dos programas de auditórios (com as reuniões no botequim Mocó da IáIá, na Rua dos Caetés) e a cobertura da mídia, até os tempos atuais. “No passado, o que percebo nas poucas imagens que vi é a ausência de escolas de samba. Você vê muitas imagens de corso, blocos, bailes, mas de escolas são poucas. Por outro lado, a cobertura nos jornais era maravilhosa, porque começava depois do natal, com sessões e páginas falando sobre os preparativos para o carnaval”, diz.
Para ele, sempre houve uma tradição de samba na cidade, mas só agora os sambistas estão se articulando com o que ele chama de “terreiro contemporâneo”, que são os veículos de comunicação. “Antes, esses sambistas, alguns na faixa dos 70 e 80 anos de idade, não tinham a oportunidade que têm hoje de aparecer na TV, cantar, gravar discos. Então, Belo Horizonte passou um bom tempo segregando o samba, por puro preconceito, a exemplo de outras cidades. Hoje, estamos vivendo esse processo de reconciliação”, conclui. (ZM)