BIG RONY É COISA NOSSA

Cantor e compositor tem acervo de letras e gravações, que tem sido redescoberto por artistas de diferentes gerações.

No início dos anos de 1970, Big Rony era mais um daqueles adolescentes que, seduzidos pelos som dos Beatles, passaram a aderir ao movimento do rock. Na região do Caiçara, no Noroeste de BH, recém- chegado da favela do Buraco Quente, no bairro vizinho de Santo André, casado, e trabalhando em um ferro-velho na Avenida Pedro II, recebe o convite do amigo e músico Ziza para ser o carregador de instrumentos de sua banda Os Turbulentos, cujos integrantes Vermelho e Flávio Venturini viriam mais tarde a engrossar o saboroso caldo do Clube da Esquina.

Apesar de não entender muito coisa de som, ele topou a parada e com sua força “carregava só com uma mão os alto- falantes”, e atuava ainda como uma espécie de segurança e anjo da guarda da meninada. “Apesar disso, era uma figura extremamente doce, legal, com quem tínhamos o maior carinho”, relembra o próprio Venturini, cuja mãe, Dona Dalila, concedia a Big Rony a tarefa de “cuidar”do filho quando ele saía de casa para os ensaios e shows. Venturini ainda contou com o auxílio do assistente de palco quando montou a banda Crisalis, período em que o compositor de Nascente já começava a flertar com os Borges e os miltons da vida.

Por ironia, o barraco em que os roqueiros costumavam ensaiar, há quase quatro décadas, é hoje um dos maiores redutos do samba de Belo Horizonte e seu proprietário, Big Rony, ou melhor, Ronaldo Antônio da Silva, de 63 anos, hoje mais conhecido como Ronaldo Coisa Nossa, seu principal divulgador. Autodidata, compositor de primeira e detentor de uma voz tão potente quanto as toneladas de instrumentos que carregava, o sambista mantém no porão, debaixo do Bar Opção, um impressionante acervo próprio de letras e gravações, que aos poucos vão tomando forma na voz de vários artistas.

Com ajuda dos três filhos e da mulher, mantém o bar aberto às sextas-feiras e aos sábados (de 19h30 até meia noite), e ainda trabalha na digitalização das dezenas de fitas cassetes com registros de suas músicas. “Mal consigo assinar meu nome. Não toco e não conheço nada de música. As coisas surgem naturalmente, faço de ouvido, com o que aprendi no livro da vida”, confessa o autor de Sou feliz: “A paixão tem o meu endereço/ ao lado de quem mesmo diz/ é o amor, me envaideço/ e grito ao mundo sou feliz”. De forma intuitiva, Ronaldo Coisa Nossa compõe, já pensando no intérprete que poderia dar vida à música, seja ele Martinho da Vila, Jair Rodrigues, Emílio Santiago ou Beth Carvalho.

Enquanto esse momento não chega, segue trabalhando e sendo descoberto pelos artistas mineiros que, como ele, também buscam um lugar ao sol. Ellen William, uma jovem de voz firme e já com apresentações no programa de calouros de Raul Gil, incluiu em seu CD de estréia o samba-canção Eclipse. Já a cantora Dóris escolheu três músicas para compor o primeiro álbum, à espera de patrocinador para chegar ao mercado. “Tenho sambas de mais de 40 anos, que eu fiz lá no Buraco Quente”, conta o filho de dona Francisca da Conceição, de 86 anos.

CARNAVAL - Criança criada “pelas mãos dos outros” e alimentada à base de água e fubá, que “a mãe fazia no meio-fio, em um fogareiro de latinha de marmelada”, Ronaldo Coisa Nossa começou cedo a dar sinais de que levava jeito para coisa. Nas idas e vindas, entre BH, o internato do governo em Lima Duarte (Zona da Mata) e uma escola rural em Mário Campos, Região Metropolitana de BH, o aluno fazia as composições e os ditados usando sempre rimas. No tempo em que passou na roça com o avô, o funcionário público e sanfoneiro José Alves da Rocha, conviveu com músicos populares e suas canções. “Na roça, onde tinha muita cobra, eu tinha que trabalhar cantando, porque se parasse era sinal de que alguma coisa tinha acontecido”, lembra.

Na adolescência, voltou a BH para ajudar a mãe, cozinheira no “Bar do Português”, no Centro da cidade. “Fui pregador de taco e comecei a catar sucata”, completa. Depois, aos 20 anos, com o dinheiro que ganhava em uma oficina de peças usadas de uma família de italianos, comprava discos e gibis, integrava blocos de carnaval e ia às festas e bailes do morro e às gafieiras no Elite. “Na primeira vez, saí com o meu patrão de uma festa e pegamos o bonde vestidos de terno, com os bolsos cheios de carne de cabrito”, diverte-se.

Ao se casar, mudou-se para um barraco na Rua Alabama, no Alto Caiçara, na época sem qualquer infra-estrutura urbana. Com ajuda de parceiros, formou o bloco É Coisa Nossa, nome tirado do seu apelido, e passou a reivindicar junto à prefeitura benfeitorias para a região. “Meu bloco era o mais pobre do carnaval, tinha 16 componentes. Comprei umas sucatas de instrumentos, reformamos e, com a ajuda do pessoal, saímos na avenida”, diz, em referência ao carnaval de 1983, em que desceu a Afonso Pena, cantando o samba-enredo à capela, pois não consegui ninguém para tocar cavaquinho ou violão. Ele e o bloco serviram ainda a tradicionais escolas de samba da cidade como Unidos do Guarani, Bem-te-vi e Inconfidência Mineira.

As benfeitorias para a rua vieram bem depois, culminando com a construção de um shopping a poucos metros de seu barraco. O local, que já era habitado pelo povo do samba, recebeu o reforço dos operários da construção, que forçaram o sambista a abrir um pequeno botequim. Nascia há 17 anos o Del Rangos, mais conhecido como Opção. Reduto de profissionais e amadores, é um dos espaços mais populares de samba da cidade.

Agora ampliado, o bar é frequentado por pessoas de todas as idades e classes sociais, com destaque para o público universitário, verdadeiros incentivadores do movimento. “Agradeço sempre às pessoas que me prestigiam. Mal assino meu nome, mas tenho o nome das pessoas que amo na cabeça e no coração.”

Força poética chamou atenção de cantora

Enquanto aguarda a gravação de seu primeiro disco, Ronaldo Coisa Nossa vai sendo descoberto pelos intérpretes mineiros. Um exemplo é a cantora Dóris, que escolheu três canções do sambista para apimentar o seu primeiro CD Dóris canta samba, uma extensão do projeto Cantando a história do samba. Ela conta que o disco foi finalizado no mês passado e agora busca captar o restante dos recursos necessários para viabilizar a prensagem de 3 mil cópias, a parte gráfica e o dois shows de lançamento do produto.

No álbum, Ronaldo Coisa Nova divide espaço com nomes já conhecidos do público, como Luiz Carlos da Vila (Cantando a história do samba e Kizomba, a festa da raça), Toninho Geraes e Serginho Beagá (Samba guerreiro), além da participação especial de Ataulpho Alves Júnior em um pout porri em homenagem ao pai, autor dos clássicos Na cadência do samba, Aí que saudade da Amélia e Leva meu samba.

“Conheci o Ronaldo quando estava fazendo o lançamento do projeto nas escolas, ao ser apresentada ao Opção, que também tem esse propósito de valorização e resgate do samba. Fiquei encantada com a sua postura”, conta a cantora. Em um dos primeiros encontros, Dóris o levou até o bar Ataulpho Alves Júnior e juntos deram uma canja. “A partir desse dia, foi firmada a amizade”, completa.

Dóris, no entanto, mal sabia o que vinha pela frente. Quando teve acesso ao arsenal de músicas do proprietário do bar ficou em “estado de choque” e foi logo gravando o samba-ijexá Escalada do Nêgo, e os sambas-canções Quero que me ame e Sou feliz.

Além da força poética e melódica, o que mais aproximou Dóris de Ronaldo Coisa Nossa foi a capacidade do compositor em fazer do samba a mais autêntica expressão da vida. “Para mim, o samba continua sendo uma forma de resistência, um instrumento de inserção do negro na sociedade”, discursa a intérprete.

SONHO - Filha de um mecânico e de uma dona-de-casa, a também contabilista disse que passou a infância e adolescência sendo discriminada, embora não tivesse à época a noção do que significava expressões do tipo “preto de alma branca”.

Mais tarde, ao entrar em contato com canções como Identidade (Se preto de alma branca é o exemplo de dignidade, não nos ajudar só faz sofrer, nem resgata nossa identidade), de Jorge Aragão, pôde se libertar. “O samba me ajudou a superar esses traumas”, afirma.

Desde criança, Dóris nutria o sonho de se tornar professora e cantora. A realidade veio abaixo quando começou a dar aulas de contabilidade para adolescentes da Pedreira Prado Lopes, na região Noroeste de BH, em 1999. “Propus aos alunos trabalhar com samba, coisa que não foi bem vista pela garotada. Mas quando cantei Tive sim, do Cartola, eles ficaram de boca aberta. A partir daí, decidi trabalhar o samba de maneira pedagógica, nas escolas”, lembra.

Com o projeto Cantando a história do samba, já percorreu 84 escolas, entre municipais, estaduais e particulares, e agora torce para que o projeto do CD seja concretizado. De quebra, pode ser apreciada todas as quintas-feiras, no Reciclo Asmare Cultural, com um repertório que dá a dimensão dos dois projetos. (ZM)

 

Visto 6937 vezes Última modificação em Quarta, 23 Maio 2018 18:10
Redação

A equipe Almanaque é composta por: Jornalistas, compositores e pesquisadores do Samba de Minas Gerais

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