AGORA SÃO ELAS!

Cantoras e compositoras mineiras, como Donelisa, Jussara leão, Dona Lúcia, Dóris e Aline Calixto, mostram que o samba também é a “praia” das mulheres

No universo do samba, a mulher sempre teve um papel de coadjuvante, apesar da sua importância para a formação desse caldo cultural, que remonta ao início do século passado, quando Tia Ciata, a lendária baiana, reunia em seu terreiro, no Rio de Janeiro, nomes como Pixinguinha, Donga, João da Baiana, Sinhô, referências do repertório samba-choro do país. Esse quadro começou a se modificar nos anos de 1960 e 1970, com a entrada em cena de intérpretes e compositoras do calibre de Beth Carvalho, Ivone Lara, Alcione, Clementina de Jesus, Clara Nunes, que mostraram ao mundo que o ritmo também pertencia a elas.

Se no berço do samba, o preconceito e a discriminação sempre foram obstáculos para a afirmação da mulher enquanto sambista, imagine em Minas Gerais? “Minha mãe sempre implicava, porque não queria que eu mexesse com música”, conta Ana Elisa de Sousa, a Donelisa, ao relembrar o início de sua trajetória como artista, ainda criança, em Águas Formosas, no Norte de Minas.

Hoje, alçada ao posto de representante feminina da Velha Guarda do Samba de Belo Horizonte, ao lado de Lúcia Santos, Donelisa vê, aos poucos, seu sonho de viver do palco e das luzes se realizar. Além de intérprete, é uma exímia compositora, com mais de 300 canções registradas.
“Comecei a compor aos 22 anos. Faço letra e melodia, toda a vida foi assim”, emenda. Ela pretende um dia ter suas músicas reunidas em um disco, “para deixar um pouco de alegria para as gerações futuras”.

Prestes a completar 59 anos, essa empregada doméstica, filha de pai lavrador e mãe professora, já passou por muitas dificuldades, fitando a discriminação e o preconceito da sociedade. Começou a cantar aos 10 anos nas festinhas de colégio e aos 15 já estava dividindo espaço com os homens nos bares da vida. Na juventude, chegou a morar no Rio de Janeiro, antes de buscar uma carreira artística em Belo Horizonte, na década de 1970. “Chegando aqui, me instalei, de cara, na marquise do edifício onde ficava a Mesbla (Rua Curitiba, quase esquina com Avenida Afonso Pena). Foi meu primeiro hotel”, brinca.

Mesmo sem lugar para morar, dormir e tomar banho, Donelisa não se curvou diante dos desafios e conseguiu, aos poucos, ocupar os espaços. Pelas mãos de José Luiz Alves, que se apresentava no Elite, foi à Ordem dos Músicos do Brasil para tirar sua carteira e começar a atuar nos bares e clubes da cidade. “Aí comecei. Cantava no Tio Patinhas, no próprio Elite, com um repertório que tinha de tudo da MPB. Do sertanejo ao brega”, completa.

A escassez financeira e o casamento fizeram com que a sambista se afastasse do mundo artístico por 14 anos. Depois, voltou a se apresentar nas rodas até ser chamada, pelo maestro Jadir Ambrósio, para integrar o grupo Velha Guarda do Samba de Belo Horizonte, sempre com composições próprias, como o Samba da maioridade e Fogo cruzado (“Tu vives passando por fogo cruzado/ só vive lembrando o passado,/ não sabes a vida viver/ jurando um amor que não pode suprir/ fingindo não gostar de mim,/ fingindo não me perceber…”

Neste ano, inclusive, Donelisa assinou o samba-enredo Itaúna, Cidade Educativa, da Inconfidência Mineira, agremiação mais antiga em atividade em Belo Horizonte. “Acho que sou a primeira mulher a subir no caminhão para cantar um samba-enredo”, arrisca- se. Em 2002, já havia participado do CD Santa folia, organizado pela prefeitura de Santa Luzia, com duas faixas: Bahia, Belô, santa folia e Com ou sem fantasia. “Aos poucos estou conseguindo caminhar, fazendo shows aqui e no interior”, comemora.

OPÇÃO - Lúcia Santos, de 60 anos, é outra componente da velha guarda que há 15 vive uma carreira voltada para o samba. Egressa das rodas de samba do Bar Opção, no Bairro Alto Caiçara, na região Oeste de BH, comandado por Ronaldo Coisa Nossa, a intérprete passeia pelo que há de mais significativo no chamado “samba de raiz”. “Não tinha nenhuma noção de que ira virar uma sambista. Não conhecia o meu potencial”, admite.

Criada no meio de uma família de músicos, Dona Lúcia passou a se apresentar profissionalmente nos anos de 1990. Seu carisma contagiou o público do Opção, a maioria formada por jovens de classe média, rompendo as fronteiras do improviso até chegar nas principais casas da região Centro-Sul da cidade. “Meu primeiro convite para tocar fora do Opção foi no Reciclo. Depois, fiz shows no extinto Armazém dos Sabores, Lapa, Graças a Deus, Cervejaria Oficial”, enumera.

Além de ser requisitada para cantar em festas particulares e em casamentos, Dona Lúcia também faz shows pelo interior do estado. “Só pode ser Deus, porque tem gente famosa que gostaria de ter um público como o meu”, compara, antes de revelar o sonho de gravar um disco só com os compositores daqui, como o próprio Ronaldo Coisa Nossa, Conga, Rosalvo Brasil, Jadir Ambrósio, amigos que reviu aos ser convocada para integrar a atual cena do samba de Belo Horizonte.

Mineiras também ganham destaque

“Acho fabuloso esse espaço conquistado, porque a mulher tem que ter peito para encarar isso, nem que seja de silicone”, brinca Jussara Leão, há 26 anos imersa no mundo do samba. Por influência do pai músico, Farnésio de Assis, começou desde criança a participar das rodas na casa
da família, no Bairro Nova Suíça (região Oeste da cidade), reduto de jogadores de futebol em uma
época em que os “baladeiros” bebiam escondidos dos técnicos.

Hoje, aos 42 anos, a sambista acumula uma experiência que permite a ela tocar todos os instrumentos do gênero, exceto os de sopros, e compor. “Sempre ergui a bandeira do samba. Participei de vários projetos de samba no Centro da cidade, ganhei troféus, integrei um grupo só de mulheres, fiz um bom nome”, garante. “A mulher, para se valorizar, não pode ser apenas um enfeite de palco”, completa a sambista, que ao lado de Eliane Jansen forma a dupla que mais flerta, no bom sentido, com os compositores mineiros.

Atualmente, Jussara prepara a gravação de um CD de músicas próprias com participação de outros compositores. A faixa Samba pra você, em parceria com Fabinho do Terreiro, já toca nas rádios. Outra que deve estar no álbum é Santo remédio, feita durante sua passagem por um leito de hospital, quando se recuperava de uma cirurgia na coluna: “O samba tem o dom de curar/ e cura com prazer até ficar para fora a tristeza vai embora/ vence meu viver/ irmão que emana/ acende a chama, larva de um vulcão/ espalha no terreiro/ invade a sala e cai no salão…”.

“Acho que em termos de intérprete a mulher está bem inserida. Ainda temos poucas compositoras, mas o quadro começa a mudar”, avalia Aline Calixto, de 26 anos, considerada uma das revelações do gênero. Ela avisa que prepara um CD independente, que deve ser lançado no fim deste ano ou início de 2008. “Quero trabalhar com as diversas linguagens do samba, passando pelo Rio, São Paulo, o samba- de-roda do Recôncavo Baiano, além de composições daqui”, diz.

ÁLBUM - Dóris também prepara para agosto o lançamento do CD Dóris canta samba, em que interpreta canções de um time formado por Luiz Carlos da Vila, Cabral, Ataulfo Alves Júnior, Toninho Geraes, Serginho Beagá, Ronaldo Coisa Nossa, entre outros. Como não conseguiu parte dos recursos para a prensagem, vem convocando o público para ajudar a viabilizar o álbum, fruto do projeto Cantando a história do samba, desenvolvido nas escolas da cidade. “Penso que estamos vivendo um processo de conquista do nosso espaço no samba”, diz.

Já a proprietária do Cartola, um dos mais concorridos redutos do samba de BH, Solange, acredita que “a mulher sempre teve presente no samba”. “Hoje, o movimento está mais forte, porque têm mulheres que não cantavam samba, mas agora se arriscam mais. Antes, era mais difícil abrir mão de família e filhos para encarar uma carreira artística”, afirma.

Tia Cecília, de 57 anos, conta que começou a se envolver com o samba por influência das filhas, que inscreveram seu nome em um concurso de rádio, no qual tirou o primeiro lugar, em 1992. “Ai foram aparecendo os trabalhos. Já abri show da Jovelina Pérola Negra, Neguinho da Beija-Flor. Acho que a mulher tem mais jeito para trabalhar com o público”, opina. No jeito ou na marra, o
certo é que o pelotão feminino vem quebrando as barreiras machistas que ainda insistem em frequentar as rodas. (ZM)

 

 

Visto 4991 vezes Última modificação em Quarta, 23 Maio 2018 18:11
Redação

A equipe Almanaque é composta por: Jornalistas, compositores e pesquisadores do Samba de Minas Gerais

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